Sérgio Amorim
O machismo que fere o homem.
“Temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não reproduza as desigualdades”.[1]
O combate à cultura machista e ao sistema patriarcal de dominação social, que compõem a base de uma sociedade dilacerada por desigualdades de gênero, se conecta a outras lutas de cidadania e por direitos humanos, como a luta pela igualdade de direitos entre homens e mulheres, a luta contra o feminicídio e contra a cultura do estupro. Mas mesmo sendo uma luta por direitos humanos e por direitos de cidadania femininos, ela não é uma luta exclusiva do movimento feminista. Muitos homens costumam ombrear com as mulheres nas lutas que o movimento feminista protagoniza por igualdade de direitos, e essa realidade é louvável do ponto de vista do reconhecimento, que muitos homens fazem, de que o machismo e o patriarcado são construções sociais que geram desigualdades de gênero e injustiças em desfavor das mulheres.
Porém, a luta antimachista também precisa vislumbrar que essa cultura, baseada na opressão, na imposição e na violência de diversos tipos, também oprime e violenta os próprios homens que as protagonizam, quando impõe um ‘comportamento de manada’ que, em nome da aceitação do grupo - no trabalho, no futebol, na escola - nem sempre os homens conseguem deixar de reproduzir, mesmo que isso lhes cause um desconforto moral. Assim, a cultura machista que oprime e vitimiza mulheres, também oprime os homens a retroalimentar essa mesma cultura, sob pena de uma censura moral preconceituosa vinda dos diversos grupos sociais que ele frequenta.
O homem muitas vezes reproduz essa postura caricata do macho insensível e opressor como forma de não ser de certa forma ‘reprimido’ pelos demais homens que, curiosamente, também estão oprimidos pela mesma cultura. O machismo é uma prisão que impõe ao homem uma certa postura insensível, dura e opressora, quando ele apenas queria ter a liberdade de poder demonstrar ser um homem gentil, amável, sensível, igualitário e ainda assim ser visto como homem.
O que nos coloca a questão de que a luta feminista e a luta antimachista não podem ser tidas como lutas do sexo feminino contra o sexo masculino, mas sim lutas de mulheres e homens contra uma cultura que lhes prejudica e lhes oprime mutuamente, embora tenhamos claro que as mulheres sejam as grandes vítimas da cultura machista e do sistema patriarcal. Vítimas incomparavelmente mais afetadas que os homens, do ponto de vista físico, psicológico e social.
Mesmo assim, não podemos minimizar os prejuízos que o machismo impõe aos próprios homens. A cultura machista e a sociedade patriarcal têm um poder visceral de proporcionar uma compreensão equivocada e opressora sobre a relação homem/mulher em todos os âmbitos da sociedade. O machismo impõe para a sociedade um homem másculo, forte, provedor, protetor, sisudo e de poucos sentimentos, em contraposição a uma mulher fraca, protegida, risonha, obediente e sentimental. Superar esses estereótipos e aceitar que qualquer dessas características podem ser atribuídas a ambos os gêneros, bem como quaisquer qualidades e defeitos também o podem, nos faz caminhar para uma sociedade menos machista e mais humana.
O Feminismo, como cultura de combate ao machismo e ao patriarcado, é essencial para a convicção da necessidade de construir um mundo mais igualitário, fraterno e solidário, onde o gênero ou o sexo de ninguém seja objeto de adjetivação. O Feminismo não é o contrário de machismo e nem visa o empoderamento feminino para cima do masculino (isso quem faz, mas ao contrário, é o machismo), mas sim um empoderamento feminino sobre o próprio feminino vilipendiado pelo machismo, e uma igualdade de tratamento em todas as esferas sociais, reconhecidas as diferenças biológicas e naturais dos dois gêneros e a diversidade de opções e orientações sexuais que daí advém.
Sem a luta feminista e antimachista, a vida é uma eterna e sofrida tentativa de adequação a uma cultura cruel construída como ferramenta de opressão e que não retrata a realidade social, pois não se pode presumir que um homem seja melhor nem pior, em qualquer campo social, que uma mulher. E vice-versa. Se essa visão de mundo onde imperam o machismo e o patriarcado são construções sociais, podem então serem desconstruídas.
Invariavelmente, no senso comum da sociedade, a palavra ‘homem’ remete a um estereótipo de alguém forte e másculo, corajoso e lutador, provedor e protetor. Uma imagem social de quem provê o sustento, protege com a força, comanda a família, domina as posições de comando econômico, social e político, não titubeia em usar a força caso ache necessário. Quebrar esse estereótipo e humanizar o gênero homem, assumindo que como qualquer ser humano ele sente medo e dor, angústia e insegurança, é uma tarefa gigantesca e necessária para quebrar a cultura machista e patriarcal que acovarda o homem para lidar com suas próprias fragilidades e vulnerabilidades naturais, causando em muitos deles, grande sofrimento, que quase sempre suportam sozinhos, amedrontados pelo machismo.
Essa masculinidade imposta pela sociedade machista e patriarcal precisa ser desconstruída, para que se construa cada uma das masculinidades possíveis, que serão atravessadas pelos processos pessoais e sociais que fazem parte da diversidade humana. O homem como muito mais do que um ser humano do gênero masculino: O homem negro, branco, índio. O homem hétero, gay, bissexual. O homem cisgênero, transgênero.
O homem casado, solteiro. O homem pai, avô, tio, ou sem filhos. O homem jovem, adulto ou idoso. O homem empregado, empresário ou desempregado; o homem tímido ou desprendido; sensível ou sisudo. Diversos são os atravessamentos pessoais e sociais que impactam nas masculinidades, e cada um deles, sozinhos ou somados, comporão as diversas masculinidades com as quais precisamos aprender a conviver e a compreender melhor, para superar a masculinidade hegemônica que até então nos tem sido imposta pelas nefastas culturas machista e patriarcal.
Essa masculinidade viril, forte e insensível, acaba promovendo necessidades tóxicas como a de competição, imposição e superação. E se transformam em incapacidade de ignorar desaforo, de resistir a desafios vazios e provocações tolas, de se admitir frágil e vulnerável, o que leva muitas vezes a ações emocionais que põem em risco a própria segurança de quem a reproduz em si mesmo e também a segurança das pessoas amadas, quando não causa de fato lesões e até morte, por ações impensadas em nome da defesa injustificável da honra dessa masculinidade tóxica.
O Machismo vitima mulheres todos os dias. Feminicídios, estupros, violências físicas, verbais e sociais contra mulheres são os inaceitáveis frutos de uma sociedade patriarcal e de uma cultura machista. Ambas precisam ser superadas culturalmente. Apesar disso, e como se já não fosse nefasto o suficiente, o machismo também atinge em cheio os próprios homens, que quase sempre sofrem calados e sozinhos as agruras dessa cultura nefasta.
Os homens se suicidam 4 vezes mais que as mulheres e vivem em média 7 anos a menos que elas. São as vítimas de mais de 80% das mortes por acidentes e homicídios. 20% deles sofre de algum tipo de dependência alcoólica. 30% deles enfrentam problemas de ejaculação precoce ou disfunção erétil. Levam em média 20 anos para revelar algum abuso sexual e apenas 30% dos homens costumam conversar com amigos sobre seus medos e dúvidas. 95% da população carcerária é formada por homens. 60% dos homens afirmam lidar com distúrbios emocionais em algum nível, ainda não diagnosticados por evitarem buscar ajuda, entre eles ansiedade, depressão, vício em pornografia e insônia[2].
Uma política pública que contribuiria de forma concreta e gradativa para a superação da cultura machista e da sociedade patriarcal seria a disponibilização e promoção, nos diversos espaços públicos, como postos de saúde e hospitais, escolas e universidades, presídios e centros de referência, de Rodas de Conversa sobre Masculinidades, orientadas por profissionais das áreas da psicologia, sociologia e filosofia, bem como por militantes das causas feministas e antimachistas.
Grupos reflexivos de homens que se percebem sofrendo e fazendo sofrer quem eles amam por conta da cultura machista se mostram soluções bem vindas em vários contextos, pois refletir sobre a realidade, questionar uma cultura que incomoda de alguma forma, e conhecer pessoas que também estão incomodadas com isso faz perceber que não se está sozinho e empodera o homem para enfrentar algo que parecia que, simplesmente, deveria ser aceito, pois é culturalmente ‘normal’.
Sérgio Amorim
Mestrando em Políticas Públicas (FLACSO) e Licenciando em Filosofia (UFPEL). Especialista em Gestão Pública (UFSM 2012) e em Ensino da Sociologia (UFRGS 2015). Sociólogo (ULBRA 2017). Contador (UFRGS 2010). Servidor Público Federal (TRT/RS desde 1997). sergiosamorim@gmail.com.
[1]Boaventura de Souza Santos. [2] SILÊNCIO dos Homens. Direção Ian Leite e Luiza de Castro. São Paulo: Monstro Filmes, 2019 (60min), com dados do Ministério da Saúde, IBGE, Levantamento Nacional de Álcool e Frogas (2001), OMS, Infopen – Sistema Prisional (2016), Papo de Homem, Instituto PDH (2019).