José Felipe Ledur
Minirreforma trabalhista (ou o deboche legislativo)
Atualizado: 22 de ago. de 2021

Ou seja, aproveitou a Medida Provisória (MP) n. 1045/21, oriunda do Executivo, para efetuar dezenas de alterações legais sem relação com o assunto tratado na MP. O propósito, assim como já se dera com a Lei 13.467/17, é o de promover a erosão de direitos fundamentais.
A Constituição Federal (CF) prevê no art. 62 a possibilidade excepcional de o Executivo atuar como legislador por meio de medidas provisórias em caso de relevância e urgência. Várias matérias estão excluídas dessa possibilidade, mas não o direito do trabalho. Se não votada em período máximo de 120 dias, cai a eficácia da medida. Há a possibilidade de emendas parlamentares. Instrumento legislativo similar a essas medidas houve em períodos ditatoriais anteriores à CF. O decreto-lei, frequentes vezes usado com base na “segurança nacional”, mantinha vigência caso não fosse votado em 60 dias. Não se admitiam emendas parlamentares.
O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu no julgamento da ADI 5127 que alterações ou inclusões no texto de medida provisória que deputados e senadores queiram fazer devem manter relação de pertinência com o conteúdo da norma original. Quer isso dizer que as emendas parlamentares não podem tratar de temas que não constaram na MP. O tribunal fixou que a inclusão de outros temas seria um procedimento antidemocrático, por não permitir audiências públicas e nem a análise por comissões temáticas.
No caso específico da MP 1045/21, teve ela a finalidade de instituir Novo Programa Emergencial de Manutenção (grifei) do Emprego e da Renda por 120 dias, que basicamente assegura o auxílio emergencial e, no âmbito trabalhista, a suspensão temporária do contrato de trabalho e a redução proporcional da jornada de trabalho e do salário. Entretanto, a minirreforma pretendida pela maioria da Câmara dos Deputados inclui programas sem vínculo de emprego e sem direitos trabalhistas e previdenciários; de primeiro emprego e reinserção no mercado de trabalho com redução do FGTS; de trabalho voluntário, que nada tem a ver com emprego e direitos afins. O adicional de horas extras foi reduzido e criam-se regras para afrouxar a fiscalização do trabalho. A contradição com os limites da MP 1045/21 é flagrante.
A decisão do STF sobre o assunto não foi considerada pelos legisladores. Nada parece detê-los, nem mesmo a Constituição que os vincula. Sim, porque é simples entender que o caráter excepcional do uso das MPs exige que o legislador se mantenha nos estreitos limites em que seu uso é autorizado. Isso é lógico, porque essas medidas só se justificam em matérias de relevância e que exigem respostas urgentes. Pode-se afirmar que há vício de origem quando, em meio à tramitação delas, matérias estranhas à originária lhes são acrescidas para contornar o procedimento legislativo fixado na CF para as leis em geral. Portanto, no caso em exame há inconstitucionalidade formal.
Superado o tema da inconstitucionalidade da manobra realizada pela Câmara dos Deputados, outro assunto de igual importância deve ser considerado. E aqui, uma incursão histórica é necessária.
Quando da votação da Constituição de 1988, a força política denominada “Centrão”, que operava no seio da Assembleia Constituinte, tentou esvaziar, à partida, os direitos fundamentais dos trabalhadores previstos nos arts. 7º e seguintes. O artifício era o de acrescer ao seu texto que eles valeriam “nos termos da lei”. Ou seja, procurava-se remeter a eficácia desses direitos à lei infraconstitucional. O propósito flagrante era o de aprovar direitos fundamentais sem eficácia, “para inglês ver”. E a prática que se seguiu nestes mais de 30 anos confirma isso diante da inércia legislativa. Considere-se que não foi votada lei em relação à maioria dos direitos fundamentais em que aparece a expressão “nos termos da lei”. Exemplos: direitos dos incisos I, X, XX, XXIII, XXVII do art. 7º da CF. No caso do aviso-prévio proporcional do inciso XXI só houve votação de lei depois que STF decidiu que o direito era auto-aplicável. Em outros, como no caso do adicional de insalubridade e periculosidade, a lei já existia antes da CF.
Para proteger os direitos fundamentais, o constituinte dispôs no art. 60 da CF que eles não estão sujeitos à supressão nem por emenda constitucional. Diante dessa vedação, o legislador, além da histórica inércia que se referiu, em tempos recentes passou a se valer da lei para erodir o conteúdo de direitos fundamentais com ou sem a expressão “nos termos da lei”. Assim, a Lei 13.467/17 esvaziou direitos fundamentais como a duração do trabalho normal e a observância de normas coletivas em caso de restrição a direitos. Embora se prometesse a criação de empregos, referida lei somente os precarizou. Exemplo disso é o contrato por trabalho intermitente. Até o acesso à justiça, direito fundamental clássico garantido no inciso XXXV do art. 5º da CF, foi esvaziado com a imposição inconstitucional de custas ao trabalhador titular do direito à gratuidade da justiça prevista no inciso LXXIV da CF.
Agora o passo foi mais ousado, com a previsão de programa que prevê contratos de trabalho sem vínculo de emprego e a sonegação de direitos como as férias, o décimo terceiro salário e direitos previdenciários; a continuidade do esvaziamento do direito à duração do trabalho normal; a imposição de restrições, sem autorização constitucional, à remuneração de horas extras; a limitação da proteção contra o desemprego garantida pelo FGTS; a ampliação do esvaziamento do acesso à justiça mediante mais exigências para a obtenção da gratuidade da justiça. Em suma, além de não cumprir o dever constitucional de editar leis onde os direitos fundamentais o exigem, o legislador, liderado por forças que novamente se autodenominam de “Centrão”, deliberadamente esvazia o âmbito de proteção de série de direitos fundamentais. Demonstra que não mantém compromisso com a Constituição.
O que se observou no processo que conduziu à aprovação na Câmara dos Deputados foi o silêncio, a paralisia das forças sociais, sindicais e profissionais do direito. Isso impõe um custo enorme para se tentar reverter, pelo menos em parte, a violação à CF e aos direitos fundamentais objetos de esvaziamento.
Restará, claro, o penoso e longo caminho do embate judicial. Espera-se que os juízes, em razão de serem os garantidores últimos da CF e dos direitos fundamentais, assumam a tarefa de neutralizar as investidas do legislador. E isso não só em nível de STF, uma vez que todos os magistrados são “juízes constitucionais”, incumbidos de fazerem valer a CF e o sistema de direitos fundamentais nos rincões mais distantes do país ao julgarem os casos concretos que as partes lhes trazem à apreciação.
A estas alturas, a presunção de constitucionalidade das leis trabalhistas encontra-se fragilizada, o que requer exame mais estrito dos juízes acerca dessa presunção. Isso porque, diante dos objetivos que tem movido o legislador, muitas alterações legislativas não são válidas, nem mesmo permitindo interpretações conforme aos direitos fundamentais. Crescem os casos em que elas devem ser excluídas da ordem jurídica por violarem abertamente a Constituição e os direitos fundamentais, como é o caso dessa minirreforma trabalhista.
José Felipe Ledur
Doutor em Direito e Juiz do Trabalho aposentado.