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  • Foto do escritorJosé Felipe Ledur

INCONSTITUCIONALIDADES DA LEI 13.467/17

Assistência Judiciária ao Trabalhador


Depois de dormitar por mais de 03 anos em razão de pedido de vista do ministro Luiz Fux, no dia 20-10-21 o STF concluiu o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 5766. Nessa ação, a Procuradoria Geral da República (PGR) questionava as regras dos arts. 790-B, caput e § 4º, 791-A, § 4º, e 844, § 2º, da CLT, incluídos pela Lei 13.467/17, também denominada de “reforma trabalhista”. De acordo com elas, mesmo com o direito à assistência judiciária gratuita, o trabalhador que perdesse a causa era responsável pelos honorários periciais e também pelos honorários advocatícios da outra parte. Além disso, a ausência injustificada à audiência inicial do processo importava o pagamento das custas, sob pena de ser vedada nova ação. A PGR sustentou que essas alterações violavam o direito fundamental à assistência jurídica integral do art. 5º, LXXIV, da CF. O STF declarou inconstitucionais as regras impugnadas, exceto a do art. 844, § 2º, da CLT.


No presente texto, examino a decisão quanto às duas primeiras regras. Transcrevo alguns pontos do voto vencido do relator e do voto de ministros que divergiram. Depois, destaco aspectos históricos, legais e constitucionais relativos ao tema sob exame, com ponderações hermenêuticas, inclusive acerca dos fundamentos dos votos; e, no final, algumas considerações acerca das implicações práticas do julgamento.

Em seu voto, o relator, ministro Luís Barroso, disse que as alterações eram constitucionais, mas as condicionou à designada “interpretação conforme”. Ou seja, julgada improcedente a ação, o titular da gratuidade da justiça que obtivesse recursos superiores ao teto dos benefícios da Previdência Social em uma segunda ação, seria obrigado a destinar 30% deles ao pagamento de honorários periciais e advocatícios devidos na primeira ação. Invocou para tanto a proporcionalidade e razoabilidade das alterações legais, que teriam o propósito de “desincentivar demandas abusivas”. Portanto, o acesso à Justiça não estaria afetado. Em declarações verbais na sessão do dia 20-10-21, Barroso explicitou suas convicções: “quem ingressou em juízo, ainda que pobre, tem de pagar se perdeu numa ação e ganhou noutra”.


Em voto divergente e vencedor, o ministro Alexandre de Moraes afirmou que a norma fere os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Ele questionou em seu voto: “o trabalhador comprovou a insuficiência de recursos, foi tido como hipossuficiente, obteve gratuidade e mesmo assim vai ter que pagar?” E concluiu: "Simplesmente entender que, por ser vencedor em um outro processo, já o tornou autossuficiente, seria uma presunção absoluta da lei, que fere a razoabilidade.


A ministra Rosa Weber, que também votou com a maioria, disse que, a pretexto de perseguir resultados econômicos e estímulos comportamentais de boa-fé processual, que poderiam ser alcançados por outras formas, “as medidas legais restringem a essência do direito fundamental dos cidadãos pobres de acesso gratuito à Justiça do Trabalho em defesa dos seus direitos”. Weber destacou que a alteração legislativa busca intimidar os trabalhadores pobres a não exercerem direito de ação assegurado no inciso XXXV do art. 5º da CF. Essa regra jusfundamental não diz que somente tem direito de ação quem, ao final, ganhar a causa. Destacou, também, lista de empregadores que violam sistematicamente direitos dos trabalhadores, tendo à frente grandes corporações privadas e públicas. E muito embora os motivos da Lei 13.467/17 reconheçam isso, não há na Lei 13.467/17 regra específica que sancione essa conduta.


Para fundamentarem seus votos, tanto a ministra quanto os ministros Luíz Fachin e Moraes sustentaram a falta de proporcionalidade da lei porque o meio utilizado era inadequado e injusto no que diz com o fim por ela visado.

O acesso ao Judiciário ou à Justiça é direito fundamental assegurado desde as constituições liberais do século XIX. Foi considerado um pilar do Estado de Direito. Para não se restringir à mera retórica, esse direito exigia estruturas materiais a cargo do Estado (juízes, servidores, advogados, prédios etc.) que permitissem o efetivo acesso à solução judicial dos conflitos.


Ciente de que esse acesso tinha custos que nem todas as pessoas podiam cobrir, sem prejudicar sua própria existência, o Direito passou a prever a gratuidade do acesso à Justiça a pessoas com insuficiência de recursos. O objetivo era isentá-las do pagamento de honorários advocatícios e outras despesas processuais. Isso também ocorreu no Brasil. Por exemplo, por meio das Leis 1.060/50 e 5.584/70. Esta última estabelece que a assistência judiciária aos trabalhadores pobres cabe aos sindicatos.


Mas, a Constituição de 1988 ampliou o direito ao prever, a assistência jurídica integral a pessoas pobres e a criação de defensorias públicas encarregadas de oferecer esse serviço (art. 134 da CF). E o direito de ação é assegurado pelo art. 5º, XXXV, da CF. E quanto aos trabalhadores, o constituinte ainda o reforçou no art. 7º, XXIX, da CF.


É certo que direitos fundamentais, para serem eficazmente exercitáveis por todos os titulares, podem exigir restrições ou conformação pelo legislador. Enquanto a restrição limita em parte o exercício por causa de colisões entre os direitos de vários titulares, a conformação visa proporcionar o próprio exercício ou uso, para o que é necessária uma lei que forneça os meios para essa finalidade. É o caso da assistência jurídica integral destinada a pessoas sem recursos e que visa assegurar o acesso à Justiça. Para isso, o legislador lhe deu conformação criando defensorias públicas. Entretanto, suas estruturas não têm sido suficientes para atender os trabalhadores pobres que queiram propor ações trabalhistas.


É por isso que vinha prevalecendo, com base na Lei 5.584/70, entendimento de que aos sindicatos cabia essa tarefa. O que o legislador acabou por fazer mediante suposta conformação à assistência jurídica integral voltada ao trabalhador sem recursos foi restringir indevidamente dois de seus direitos fundamentais: a gratuidade da justiça e o direito de ação. Mas a conformação a um direito fundamental não permite, por vias transversas, restringi-lo.


A proteção dirigida a reparar a desigualdade material entre o empregado e o empregador consolidou-se historicamente como princípio jurídico no qual se assentam outros subprincípios e institutos do Direito do Trabalho. No século XX, o princípio da proteção se estendeu para outros ramos do direito. E passou-se a considerar que é princípio necessário à proteção dos indivíduos frente a detentores de poder econômico e social. No caso brasileiro, o núcleo do próprio Direito do Trabalho transitou da lei (CLT) para a Constituição em 1988. Em vista do abrangente rol de direitos fundamentais dos trabalhadores, a proteção atualmente encontra, com maior razão, seu fundamento na Constituição. E o exercício do direito de ação insere-se na proteção que o Judiciário deve assegurar a indivíduos fragilizados economicamente.


Dito isso, deve-se dizer que a prerrogativa do legislador de estabelecer restrições ao exercício de direitos fundamentais não exclui os limites a que ele próprio está subordinado ao legislar. Ele está vinculado à função de proteção dos direitos fundamentais e às normas em geral da CF, que lhe impõem não só a observância da constitucionalidade formal, mas também material, e que envolve a proteção ao núcleo essencial dos direitos fundamentais.


Entretanto, a Lei 13.467/17 foi fórmula que a maioria parlamentar e autores intelectuais, inclusive com assento no Judiciário, encontraram para violar série de direitos fundamentais dos trabalhadores. Não ficaram nisso. Procuraram intimidá-los para que se conformassem com essas violações. Para isso, acenaram com a espada de dâmocles para os titulares do direito à gratuidade da justiça que a invocassem em ações judiciais.

Diante disso, importa dizer algo sobre os fundamentos dos votos dos ministros que se referiu acima.


A interpretação conforme é um meio que o juiz utiliza se, de um mesmo texto jurídico, resulta mais de uma norma, ou seja, mais de uma solução jurídica para o caso. Diante dessa hipótese, o juiz escolherá a norma que melhor se harmoniza com a Constituição. O que o juiz não pode fazer ao realizar a interpretação conforme é criar, ele próprio, outra regra ou regra adicional àquela que está sob interpretação para que ela mantenha conformidade com a Constituição. Em lugar de fazer isso, já que não é legislador, deve declarar inconstitucional a regra sob interpretação. O que o ministro Barroso fez em suposta interpretação conforme foi contrariar a exigência relativa a não-criação de uma regra adicional para conferir constitucionalidade ao texto legal sob exame.


De outro lado, ao fundamentar seu voto em considerações de natureza econômica, o ministro Barroso nivelou por baixo a proteção jurídica que o Direito tem de reservar a 60% dos trabalhadores brasileiros que recebem até dois salários mínimos. Considerar que valores resultantes da procedência em outra ação possam ser utilizados para pagar despesas processuais revela desconhecimento da natureza dos créditos obtidos numa causa trabalhista. São eles originários de meses ou anos de violações a direitos básicos como horas extras, diferenças salariais, trabalho insalubre, falta de recolhimento de FGTS etc... Portanto, implicam a piora das condições de subsistência por longo período. É fácil concluir que não é o acúmulo desses valores numa única ocasião, após ganho de uma causa, que torna o trabalhador autossuficiente, como bem observou o ministro Moraes em seu voto.


A falta de proporcionalidade da lei é gritante, uma vez que pretende promover suposta contenção de litigância indevida, intimidando os trabalhadores sem recursos a não buscarem a reparação do direito que julgam violado. Nesse sentido, foram adequadas as ponderações da ministra Weber, ao refutar a associação da perda de uma ação judicial com a necessária imposição de sanções econômicas em outra causa, na qual o trabalhador tenha ou venha a obter créditos.


Ainda que se entenda que o inciso LXXIV da CF autoriza restrição ao direito em vista de possível colisão com valor constitucional como a credibilidade do sistema de justiça, o postulado da proporcionalidade imporia ao legislador considerar se o meio utilizado promove o fim visado pela restrição (adequação) e se o fim visado não pode ser alcançado por outro meio igualmente eficaz, mas menos oneroso ao direito sob restrição (necessidade). Proporcionalidade significa atribuir a cada qual a porção que lhe é devida. Salta aos olhos a inadequação de sanções econômicas a trabalhador sem recursos que ajuizou ação e não obteve sucesso na causa. Medidas menos onerosas podem, por exemplo, ser impostas por meio de multas tanto às partes que litiguem de má-fé quanto à testemunha que altera ou omite a verdade (arts. 793-A a D, da CLT).


A pergunta final que permanece é a seguinte: quem responderá pelos prejuízos causados aos trabalhadores sem recursos, amedrontados para exercerem o direito de ação ao longo dos anos em que a ADI não foi levada a julgamento? Quem responderá pelas somas eventualmente subtraídas dos trabalhadores pobres que exerceram o direito de ação e foram compelidos a pagar honorários advocatícios e periciais, muito embora protegidos pela regra jusfundamental da assistência jurídica integral (destaquei) prevista no art. 5°, LXXIV, da CF?


Concluindo, de um lado, deve ser saudada a decisão a que chegou a maioria do STF. De outro, fica em aberto o debate acerca de quem deve responder pelos danos causados pelo retardamento indevido da solução de casos que atingem as bases do Estado de Direito, além de prejudicar justamente quem não dispõe de recursos.


José Felipe Ledur



Doutor em Direito e Juiz do Trabalho aposentado.

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