Henrique Alexander Grazzi Keske
Falsa polêmica: prisão em segunda instância.
O relatório da Proposta de Emenda à Constituição (PEC 199/19) da prisão em segunda instância pode ser votado até o fim do mês na comissão especial da Câmara dos Deputados. O projeto já passou pela Comissão da Constituição e Justiça da Casa. Na prática, a PEC antecipa os efeitos do chamado trânsito em julgado, ou seja, a sentença da qual não se pode mais recorrer.
Ou seja, nem só de campanha pelo voto impresso vive nosso Congresso Nacional...
Na realidade, trata-se de uma falsa polêmica. Ela foi estabelecida no direito brasileiro, desde 2018, acerca da possibilidade de prisão em segunda instância. Então, para dirimir quaisquer dúvidas, se deva partir do que afirma o próprio texto da Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso LVII: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Resta somente explicar o sentido da expressão trânsito em julgado, que, sem quaisquer contestações possíveis, significa o esgotamento de todas as instâncias e possibilidades recursais; ou seja, a única tradução possível é esta: só será considerado culpado aquele que tiver sua sentença penal condenatória confirmada pela última instância da Justiça Brasileira, depois de esgotados todos os recursos disponíveis à defesa e somente depois disso é que poderá ser preso.
Assim, ninguém poderá ser preso de outra forma. Simples assim – não há o que interpretar, sem acrescentar-se algo ao texto constitucional, o que não é permitido em nenhuma hipótese ao Judiciário.
Portanto, quando o Supremo Tribunal Federal determinou a possibilidade de prisão em segunda instância, isso foi flagrantemente inconstitucional. Depois, o próprio STF corrigiu o erro. Então, sempre fica a suspeição de que, em verdade, isso se caracterizou como um golpe jurídico-político para cassar os direitos políticos de Lula nas eleições de 2018, impedindo-o de concorrer.
Ademais, resta acrescentar que esse inciso, ao integrar o artigo 5º, ou seja, dos direitos e garantias fundamentais trata-se de cláusula pétrea, o que significa que não pode ser alterado nem mesmo por uma PEC – Proposta de Emenda Constitucional.
Qualquer movimento, nesse sentido, configura-se como absurdo. Esse dispositivo somente poderia ser alterado pela elaboração de uma nova Constituição, via uma Assembleia Nacional Constituinte, com Parlamentares especialmente eleitos para esse fim, ou quando se transforma o Congresso Nacional em Assembleia Constituinte, como ocorreu em 1988.
Não há outra possibilidade. Discute-se, de maneira incoerente, alterar o significado da definição de trânsito em julgado, o que se configura como impossível, pois alteraria os fundamentos do próprio Estado Democrático de Direito, ao instituir a ampla defesa e o contraditório.
Por fim, critica-se a quantidade de recursos admitidos no direito brasileiro, o que também implicaria em cerceamento da ampla defesa e do contraditório.
Cabe ressaltar, ademais, que esse dispositivo dos direitos e garantias fundamentais, como o nome o diz, surgiu no processo de redemocratização do Brasil, que se consubstanciou com o fim do regime de exceção, desde que se implantou a ditadura civil-militar no país, que durou de 1964 a 1985, ou seja, 21 anos de arbítrio do Estado, atuando contra as liberdades e garantias de direitos fundamentais.
Portanto, tais garantias foram editadas com o objetivo de restringir a ação abusiva do Estado e restabelecer o fundamento inamovível do Direito Penal, que não pode ser a primeira razão de atuação repressora, mas a última forma de atentar contra a liberdade daqueles que, uma vez submetidos ao legítimo processo, sejam, efetivamente declarados culpados, uma vez esgotadas todas as prerrogativas de defesa.
O que se quis evitar, dessa forma, foi a continuidade de um Estado policialesco, capaz de ferir os direitos fundamentais, como nos anos de chumbo da ditadura. Portanto, ninguém está defendendo criminoso, mas afirmando que só se pode definir alguém como tal depois de esgotadas todas as instâncias e todos os recurso de defesa, em um legítimo processo judicial, dirigido por autoridade competente, ou seja, pelo juízo natural, a quem compete decidir a ação em questão.
É isto que diz o texto da Constituição. Fora disso se tem o arbítrio. Distorções podem ter ocorrido e a crítica é válida, mas se devem encontrar os remédios constitucionais para isso e não artimanhas políticas, pretensamente revestidas do caráter de estarem em sintonia com o Estado Democrático de Direito.
Henrique Alexander Grazzi Keske
Doutor em Filosofia, avaliador do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito - CONPEDI e pesquisador da linha da Linguagem, Racionalidade e Discurso da Ciência.