Alessandra Andrade
Agosto Lilás e as mulheres que a Lei Maria da Penha não alcança.
Desde a semana passada me preparo para escrever esse texto. Já com uma lista de fatores que fazem da LMP uma lei frágil, constantemente atacada e que não consegue ser efetiva, uma vez que os próprios “operadores do direito” a ignoram ou dela tripudiam. Veja-se a atuação do Ministério Público e Juizados de Violência Doméstica.
Quando entram na seara das Varas da Família ouvem, literalmente, “aqui Maria da Penha não vale". E procedimentos machistas como esse fazem com que 75% das mulheres vítimas de feminicídio[1] sejam mães, quase na totalidade, que tiveram filhos em comum com seus agressores.

Nas Varas de Família, a mão pesada do patriarcado impõe a mulheres e crianças a convivência compulsória com agressores pelo bem universal da "Família". Lá não existe violência, não existe estupro, ou qualquer motivo que faça uma mulher querer "destruir uma família", nada justifica uma separação, e essa mulher pode ser gravemente punida por se insurgir contra o sistema patriarcal que violenta e controla nossos corpos. E aquilo que ela quer para si, quer também para suas crias. Isso falando das mulheres que ainda têm conhecimento e tentam acessar as medidas protetivas que a LMP impõe.
A LMP, uma "menina" de 15 anos, continua sofrendo com a cultura machista, a cultura do estupro e o preconceito. Foram anos para sua construção e a cada dia que passa, chegam mais projetos de lei que buscam fragilizá-la ou torná-la inaplicável.
No judiciário permeia a ideia de que as mulheres são mentirosas e manipuladoras. Interessante é que essa ideia aparece exatamente quando as mulheres começaram a recuperar as suas vozes. Assim que se fizeram ser ouvidas, cresce também o contra-ataque. Os que sempre dominaram não suportam a ideia de que queiramos ser sujeitas de direito e dignidade, que deixemos de ser servas e procriadoras somente.
Como sempre, para reverter esse processo tentam nos calar pela força, violências e preconceitos. "Mulher é tudo fofoqueira, não acredita nela". E o senso comum assume isso como verdade. E se a antiga ideia de fofoca como um pecado peculiarmente feminino for só uma maneira de impedir as mulheres de contar as histórias do que aconteceu com elas e quem elas são?
Se está difícil, quase impossível, para quem conhece a lei, como ficam as mulheres e meninas inalcançáveis?
Onde estão as leis de proteção que não acolhem as mais vulneráveis, as que estão presas e morrem todos os dias? Que leis são essas que dizem que somos iguais em direitos e deveres e que permitem que meninas sejam estupradas, dilaceradas, desmembradas, como as meninas indígenas de 14 e 11 anos, Daiane e Raissa, assassinadas brutalmente como demonstração de controle e colonialismo a que estão sujeitas há centenas de anos.

Que Estado é esse? Que sociedade é essa nossa que não toca fogo no país quando um fato desses acontece. Já disse outras vezes, nota de repúdio e Abaixo-assinado não salvam ninguém. No dia do lançamento do movimento #NemPenseemMematar, que contava com mais de 50 mil assinaturas, várias mulheres foram vítimas de feminicídio. E não é fazer pouco caso de uma bela campanha. As leis estão ok, as campanhas também. Mas não podemos continuar fazendo de conta que os operadores da lei, aqueles que estão nos órgãos de acolhimento, estão cumprindo a lei.
Existem vários programas e projetos excelentes, mas que falham já na porta da delegacia, onde não há acolhimento e quando há a medida seguinte é levar a mulher e filhos para um abrigo (quando acontece). Sujeita às mulheres a novas violências. A lei não diz que o agressor tem que sair? Elas passam por violência física, sexual, moral, patrimonial (agora com o aval do Estado).
A violência continua no judiciário quando juízes aconselham as mulheres a perdoar e voltar para a casa ou quando dão medidas protetivas só para elas e não para os filhos, ou seja, não há o afastamento do agressor e sim a culpabilização das vítimas que são condenadas sem qualquer direito de defesa.
Se adentrar na esfera "familiarista" ainda são ameaçadas de perder seus filhos, com acusações de alienação parental, uma estratégia de defesa de agressores muito bem aceita no judiciário que encontra nessa ideologia, em forma de lei: Lei de Alienação Parental - n° 12.318/2010. Trata-se da desculpa perfeita para manipular, violentar e agredir mulheres, incluindo juízas, em sua posição de poder onde tudo lhes é permitido e nada questionado, não oficialmente.
Temos que parar de questionar umas às outras, estamos sendo usadas. As mulheres são loucas, histéricas? Quantas histéricas foram mortas ou internadas em hospícios por denunciar violência, estupro ou simplesmente querer o divórcio. O próprio Freud revelou em seus estudos que aquilo que era visto como histeria era, na verdade, os momentos em que as mulheres exortavam as violências e opressões sofridas. Nada mais cômodo ao patriarcado do que desqualificar as mulheres para poder ridicularizar e desqualificar suas denúncias.
Precisamos urgentemente questionar o Estado e o Poder Judiciário pelo não cumprimento das leis. Precisamos de educação em Direitos Humanos, igualitária e não-sexista, fora da cultura machista que oprime e aprisiona as mulheres e os homens, em graus diferentes. O capitalismo deu aos homens o controle sobre as mulheres para que estes não percebam sua própria escravidão.
Alessandra Andrade
Servidora Pública. Graduada em Gestão pública pela UNINTER e Especialista em Direitos Humanos pela FMP.
[1] MAPA DO FEMINICÍDIO 2021 https://www.naosecale.ms.gov.br/wp-content/uploads/2021/06/MAPA-DO-FEMINICIDIO-2020.pdf