Alessandra Andrade
É necessária uma Aldeia inteira para criar uma criança
Não é preciso fazer grandes buscas na internet para encontrar canais de denúncias de maus tratos contra as crianças. Tudo muito acessível, tudo muito bonito. Por outro lado, os números de agressões e comunicações tardias de violências e negligências cujas vítimas são crianças e adolescentes só crescem. Em tempos de pandemia, esses números têm se agravado.
Mas o que acontece? Se existem tantos canais de denúncia, se as redes de acolhimento são tão boas, por que tantos casos de violência só são conhecidos tarde demais?
O caso de Henry Borel, assassinado no último dia 08 de março, é mais um exemplo. Não foi vítima de um evento ao acaso. Ele já mostrava os sinais da violência sofrida: tristeza, choros, machucados e mudanças no comportamento. Seu pedido de socorro foi ignorado pelos pais, professores, vizinhos, médicos e familiares. Além dele ter sido vítima de um agressor costumaz, existe um aspecto que poucos conhecem e é este que venho apresentar: o uso da Lei da Alienação Parental, nº 12.318[1], como estratégia de defesa de agressores.
Entre as formas exemplificativas de alienação parental consta no Art. 2o: “VI - apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste ou contra avós, para obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente;”, o qual é passível, entre outras punições previstas no Art. 6° ”V - determinar a alteração da guarda para guarda compartilhada ou sua inversão e, VII - declarar a suspensão da autoridade parental.”
O que isso tem a ver com o caso? Na alegação do pai biológico do menino consta que ele fora ameaçado de ter que responder por alienação parental, quando confrontou a mãe sobre o que poderia estar acontecendo com seu filho. Ou seja, estaria ele influenciando o filho para inventar fatos contra o padrasto.
Aí todos diriam: “Mas os fatos eram verdadeiros, não se tratava de uma denúncia falsa”. Infelizmente, não é assim que nosso judiciário funciona. Quem tem que provar que o crime ocorreu é a vítima.
O fato é que ninguém é condenado sem provas matérias concretas. Qualquer pessoa que já teve que recorrer ao judiciário sabe que, na maioria dos casos, as provas apresentadas nunca são suficientes. Na prática, uma vez que apresentada uma denúncia onde as partes, denunciante e acusado, tiveram algum relacionamento afetivo, é entendido como “mero conflito familiar” e parte-se do princípio de que uma das partes inventou algum fato e fez uma falsa denúncia, para prejudicar a outra parte.
Em alguns processos em que há disputa de guarda, o Ministério Público, que é quem deveria atuar em prol dos mais vulneráveis, apresenta a suspeita de alienação parental, mudando totalmente o objeto do processo. Se antes um dos genitores era o denunciante da agressão ao seu filho, agora esse é o acusado e como acusado de alienação parental, terá que enfrentar a desqualificação de sua fala, passará por várias e várias perícias, para que se comprove a alienação e o que era o motivo do processo (a violência contra a criança) já não estará mais em foco.
Se você acha que já leu absurdos suficientes saiba que a pessoa que tenta proteger seu filho, em desfavor do outro genitor, pode acabar perdendo a guarda e o contato com a criança. Ou seja, tu entras no Judiciário em busca de justiça e proteção e acaba sofrendo violência institucional. Em 89% dos casos, acontece a entrega do filho exatamente para o agressor, sendo 47,3% de forma definitiva por inversão de guarda[2]. E aí, é para ter medo ou não?
Refere-se que a Lei de Alienação Parental é única no mundo, e surgiu como resposta à Lei Maria da Penha (mas isso é assunto para outro momento). Esse procedimento de inversão de guarda é descrito como “terapia da ameaça”, como um tratamento a ser dado ao genitor alienador, descrito por Richard Gardner[3], desenvolvedor da ideologia da alienação parental.
Então, até aqui você praticamente esqueceu que o assunto principal era outro. E é assim que há 10 anos essa lei tem funcionado como a principal estratégia de defesa de agressores e abusadores. Faz 10 anos, também, que essa ideologia fez sua primeira vítima, a menina Joanna Marcenal, assassinada pelo pai e madrasta, após a inversão de guarda, decorrente da denúncia feita pela mãe por maus tratos, onde foi alegada alienação parental mesmo antes da lei ser sancionada.
De Henry à Joanna, uma trajetória de violência, mortes, negligência do Estado e um Judiciário parcial, que usa deste “refinamento do machismo” para fortalecer esse sistema patriarcal. A LAP, para os íntimos, tira o foco da violência. Uma vez que as provas exigidas quase nunca são suficientes, os processos criminais acabam sendo arquivados por falta de provas. Porém, nas varas de família, essa “falta de provas” é entendida como falsa denúncia e assim, é colocado uma mordaça em quem denúncia, seguido de coação para desistência do pedido de afastamento, que é o que normalmente se pretende, afastar a criança de seu agressor(a), e em caso de qualquer insurgência quanto a esses absurdos, ser declarado incapaz de conviver com seu filho.
Importante citar que os magistrados, que referem estar simplesmente cumprindo a lei, e combatendo a alienação parental, são os principais alienadores. Sendo que determinam o afastamento do genitor protetor, tirando seu contato, descumprindo o Art. 7° da própria lei que dizem ser de proteção. A saber, “A atribuição ou alteração da guarda dar-se-á por preferência ao genitor que viabiliza a efetiva convivência da criança ou adolescente com o outro genitor nas hipóteses em que seja inviável a guarda compartilhada.”
Fica a pergunta: Como proteger nossas crianças num país onde existam leis, mesmo que de forma velada, que visam coibir as denúncias?
[1] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12318.htm [2] Conforme dados do Cadastro Nacional das Vítimas da Lei de Alienação Parental, realizado pelo Coletivo de Proteção à Infância Voz Materna e Coletivo Mães na Luta (https://www.facebook.com/coletivomaesnaluta). [3]Richard Gardner, 1931-2003, médico estadunidense, defensor da pedofilia, que atuou como perito técnico em mais de 400 processos, incluindo o caso Mia Farrow X Wood Allen. Desenvolveu a ideologia da alienação parental para seu usada em processos de divórcio onde ocorriam denúncias de violência doméstica e abuso sexual intrafamiliar.